quarta-feira, agosto 29, 2007

Miolo...


Saí de casa pela fresca para apanhar o autocarro. As pessoas vão-se agrupando na paragem, disciplinada e desordenadamente. O enorme monstro vem aos saltos sobre os paralelepípedos negros, a bufar e a uivar. As pessoas vão-se aproximando da glória de serem os primeiros a entrar no ventre malcheiroso do monstro. Qual Caronte, o barqueiro do inferno de Dante, o motorista olha-nos com olhos de fogo, tentando descortinar as irregularidades na documentação que lhe apresentamos.

Os únicos lugares são de pé, onde nos entrechocamos, com os saltos do leviatã que se desloca com rapidez, ansioso por engolir, até mais não poder, os seus passageiros. No seu ventre, uma algaraviada de sons pretende servir de comunicação, não mais sendo que berros lançados de uns passageiros a outros que tentam captar a informação assimbólica. As vidas dos outros, as novelas, os jogos, os concursos são bons motivos para não acordarmos. Os metros até à paragem seguinte são engolidos tão depressa como os passageiros que nela entram.

Com entrada do fiscal, a malta, com um receio enraizado da autoridade, parece encolher-se na sua pequenez. A palavra “pica” percorre o imenso veículo. E o bom português na sua já longa tradição de fuga à autoridade, permite o alerta ao incauto transgressor.

Finalmente saio, com a respiração apressada, após um combate quase titânico com os que ficam. O monstro lá continua a sua viagem com asfixiante bufar, na busca de necessitadas vitimas do transporte.

Ainda não cheguei ao fim da minha viagem e já entro na gigantesca serpente que percorre as fundações da cidade. Nem aqui os passageiros se tornam mais disciplinados. Agridem, empurram, desafiando-se com impunidade. O grande prémio é um assento, que ocupamos durante 5 penosos e cansativos minutos, sob um ar condicionado avariado. A velocidade imposta pelo verme é tal que precisamos das nossas forças para manter um precário equilíbrio.

Na saída, nova batalha se desenrola em busca da luz do dia.

Cá fora separo-me dos outros e só, percorro os passos que me levam ao cansativo dia que vou ter pela frente.

22/02/2000

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