quinta-feira, agosto 30, 2007

Um dia bonito

Ainda era noite quando acordei. A friagem da manhã convidava-me a ficar na cama junto de Anton. Mas como acontece sempre, levantei-me para arranjar-lhe qualquer coisa para comer antes de ir para o campo. Vesti o mesmo vestido de ontem porque hoje não há missa. Olhei para o céu enquanto me vestia e senti que ia estar um dia bonito, sem nuvens que o estragassem.

Enquanto descia para a cozinha relembrando as tarefas do dia, ouvia Carmen a levantar-se. Ia ser mais um dia em que as palavras que trocássemos não seriam mais do que o “bom dia”, “a janta está na mesa”, “vai levantar a tua filha”. Lavei duas malgas, onde iríamos demolhar o pão seco no leitinho fresco tirado da vaca “se esta preguiçosa se despachar” – pensei.

Tinha 25 anos e estava casada à 8. Já não é uma miúda e devia saber cuidar da família. Só quer estar para ali a bordar... ainda se o fizesse bem e vendesse para fora, não teria de ser eu a tomar conta de tudo. Lá vem ela com o leite e os ovos. Vai queixar-se outra vez que o galo a picou.

Anton e o genro entram na cozinha.

- Bom dia, minha mãe – diz-me Manolo. Continuo sem perceber como este bonito e esperto rapaz se casou com a preguiçosa da minha filha.

- Bom dia, menino. Então, é hoje que a égua vai parir?

- Parece. Hoje vai ser um bom dia – diz, olhando para fora.

- Sim – responde Anton, que apesar das poucas palavras e das advertências muito gosta do genro.

Quanto saíram, beijei ambos sob o olhar preguiçoso de Carmem, que depressa repetiu o gesto. Penso, com alivio, que ainda bem que Manolo acabou a tropa antes de começarem a lutar, se não poderia estar a chorar dois filhos.

Já o Sol subia no céu quando disse à miúda para levantar a filha. Eu tinha de ir comprar pão. Com traquinice a miúda tentou trepar-me pelas pernas, pedindo “beijo, vó, beijo”. Nada de mal acontece num dia bonito.

Pelo caminho para a padaria, ouvia noticias da guerra e pensava no meu Alfonso que Deus tinha. Morrera em Madrid, quase há um ano quando os militares fizeram o golpe. Lá, longe da Biscaia, longe de Guernica, onde a guerra nunca vai chegar.

2000/02/16

quarta-feira, agosto 29, 2007

Miolo...


Saí de casa pela fresca para apanhar o autocarro. As pessoas vão-se agrupando na paragem, disciplinada e desordenadamente. O enorme monstro vem aos saltos sobre os paralelepípedos negros, a bufar e a uivar. As pessoas vão-se aproximando da glória de serem os primeiros a entrar no ventre malcheiroso do monstro. Qual Caronte, o barqueiro do inferno de Dante, o motorista olha-nos com olhos de fogo, tentando descortinar as irregularidades na documentação que lhe apresentamos.

Os únicos lugares são de pé, onde nos entrechocamos, com os saltos do leviatã que se desloca com rapidez, ansioso por engolir, até mais não poder, os seus passageiros. No seu ventre, uma algaraviada de sons pretende servir de comunicação, não mais sendo que berros lançados de uns passageiros a outros que tentam captar a informação assimbólica. As vidas dos outros, as novelas, os jogos, os concursos são bons motivos para não acordarmos. Os metros até à paragem seguinte são engolidos tão depressa como os passageiros que nela entram.

Com entrada do fiscal, a malta, com um receio enraizado da autoridade, parece encolher-se na sua pequenez. A palavra “pica” percorre o imenso veículo. E o bom português na sua já longa tradição de fuga à autoridade, permite o alerta ao incauto transgressor.

Finalmente saio, com a respiração apressada, após um combate quase titânico com os que ficam. O monstro lá continua a sua viagem com asfixiante bufar, na busca de necessitadas vitimas do transporte.

Ainda não cheguei ao fim da minha viagem e já entro na gigantesca serpente que percorre as fundações da cidade. Nem aqui os passageiros se tornam mais disciplinados. Agridem, empurram, desafiando-se com impunidade. O grande prémio é um assento, que ocupamos durante 5 penosos e cansativos minutos, sob um ar condicionado avariado. A velocidade imposta pelo verme é tal que precisamos das nossas forças para manter um precário equilíbrio.

Na saída, nova batalha se desenrola em busca da luz do dia.

Cá fora separo-me dos outros e só, percorro os passos que me levam ao cansativo dia que vou ter pela frente.

22/02/2000

sábado, agosto 25, 2007

Só mais uma noite...


O cheiro fazia lembrar o interior do motor de um autocarro. A música lembrava uma serração. O ambiente, um autentico circo. Apesar de estar apenas a assistir, também eu fazia parte do espectáculo. Um urso grandalhão, de camisa às riscas azuis e amarelas, foi arrastado por entre raios laser multicoloridos por uma mulher feita de borracha. Iniciaram, então, algures entre outros pares semelhantes, um estranho ritual de pré-acasalamento, pulando, ondulando, agitando os braços sobre as cabeças, num ritmo que pouco ou nada estava relacionado com as marteladas por trás da serra eléctrica. As mãos e o corpo exploravam o corpo do companheira, com as suas enormes patas estreitava-a com força. Perdi o interesse nestes. Não iria ver nada de novo ou diferente.

O meu olhar vagueou confusamente pelo resto do local, inconsciente da minha presença. De repente já não estava só. Uma enorme boca, com uma fileira de dentes perfeitos sorria a curta de distância, tentando formar sons audíveis no meio da construção do barco (tenho a certeza que era um barco que construíam, porque começava a ficar enjoado). Aproximei-me um pouco mais em duas ou três cabeçadas. Perguntou se podia beber o que eu estava a beber. Que não, que o copo era meu, mas se quisesse que pedisse um igual. Agora sorriram os olhos (maliciosamente?!), e perguntou, aproximando-se muito, se eu estava bem. O meu sorriso espraiou-se num mar de rum, e disse-lhe que sim. Começava agora a reparar nela: era uma mulher! Tinha um pequeno top branco de onde espreitavam uns mamilos curiosos. Já as calças terminavam com umas penas castanhas, o que me fez pensar “que raio de pássaro é esta?” Ela acompanhou o meu movimento de apreciação, com um gole do meu copo, que entretanto fugira em busca de umas mãos mais agradáveis. Não era o meu tipo de mulher.

Agradou-me no entanto não estar só. A conversa fluiu por imbecilidades que pouco ou nada tinham de importante, como: “como te chamas?” ou “o que é que fazes?”. Mas por aí se quebrou gelo e até o motor estava a cheirar melhor, e já eu estava a lamber o rum acumulado na garganta dela.

Perguntou-me se queria ir para outro sítio e eu concordei. Queria mostrar-lhe as coisas em que sou bom. Naquele momento já ela era o que havia de mais importante. Tinha uma cabeça inchada pelo alcool e outra pelo desejo. Vestiu um blusão com o peito de pomba que lhe faltava a ela e saímos como duas folhas ao vento, tropeçando até ao meu velho carro, que tantas noites me levara a casa.

Liguei o rádio de onde fugiu a leve melodia da Úrsula, “Fica com as tuas recordações que eu fico com as minhas” ou a apologia do cornudo. O carro, esse ciumento, embirrou que não pegava. Em arrastadas palavras expliquei-lhe que ele era o verdadeiro amor da minha vida. Por fim, no meio de negros soluços de rancor, lá se dignou a ronronar como um leão esfomeado.

Avançámos ao longo da Alam. 31 de Fevereiro , com fogo nas calças pois as mãos delas paravam tanto como as minhas que mal acariciavam o volante. Ela indicando, com a boca cheia, esquerda, direita... E eu acelerava. Todo eu acelerava. E o carro chateou-se de vez, deixando de nos guiar, com um súbito grito LEVA O TU! atirou-se para fora da estrada, saltando por cima de dois carros e espetando-se na montra de um stand de automóveis. Talvez tenha visto a berlina da sua vida.

Dou por mim com o volante retorcido, coberto de vidros e com algo que se assemelha a uma mulher no capot do carro. Parece ter uma massa de sangue no lugar da cabeça. A minha mão não pára de abanar, num ângulo algo estranho. O vómito nas calças e no tablier deve ser meu. A boca sabe-me a vómito. Apetece-me dormir.