Enquanto descia para a cozinha relembrando as tarefas do dia, ouvia Carmen a levantar-se. Ia ser mais um dia em que as palavras que trocássemos não seriam mais do que o “bom dia”, “a janta está na mesa”, “vai levantar a tua filha”. Lavei duas malgas, onde iríamos demolhar o pão seco no leitinho fresco tirado da vaca “se esta preguiçosa se despachar” – pensei.
Tinha 25 anos e estava casada à 8. Já não é uma miúda e devia saber cuidar da família. Só quer estar para ali a bordar... ainda se o fizesse bem e vendesse para fora, não teria de ser eu a tomar conta de tudo. Lá vem ela com o leite e os ovos. Vai queixar-se outra vez que o galo a picou.
Anton e o genro entram na cozinha.
- Bom dia, minha mãe – diz-me Manolo. Continuo sem perceber como este bonito e esperto rapaz se casou com a preguiçosa da minha filha.
- Bom dia, menino. Então, é hoje que a égua vai parir?
- Parece. Hoje vai ser um bom dia – diz, olhando para fora.
- Sim – responde Anton, que apesar das poucas palavras e das advertências muito gosta do genro.
Quanto saíram, beijei ambos sob o olhar preguiçoso de Carmem, que depressa repetiu o gesto. Penso, com alivio, que ainda bem que Manolo acabou a tropa antes de começarem a lutar, se não poderia estar a chorar dois filhos.
Já o Sol subia no céu quando disse à miúda para levantar a filha. Eu tinha de ir comprar pão. Com traquinice a miúda tentou trepar-me pelas pernas, pedindo “beijo, vó, beijo”. Nada de mal acontece num dia bonito.
Pelo caminho para a padaria, ouvia noticias da guerra e pensava no meu Alfonso que Deus tinha. Morrera em Madrid, quase há um ano quando os militares fizeram o golpe. Lá, longe da Biscaia, longe de Guernica, onde a guerra nunca vai chegar.
2000/02/16